Como aplicamos práticas de UX Writing em projeto que oferece terapia de graça para jovens

Artur Ferraz
9 min readOct 6, 2021

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Solução pensada para case de portfólio, aplicativo “PsiÜ!” é voltado para público de 14 a 29 anos que busca atendimento psicológico acessível.

Como tudo que envolve o processo de trabalho de UX Design, a parte de Writing tem início muito antes da escrita dos textos em si. No nosso caso, começamos a pensar na linguagem que íamos utilizar para proporcionar a experiência dos futuros usuários ainda no momento de definir a área de atuação e o serviço oferecido pelo projeto.

Recapitulando, o nosso grupo idealizou o aplicativo “PsiÜ!”, desenvolvido como case de portfólio para o programa UX Unicórnio. A plataforma fornece um espaço on-line em que clínicas-escola de faculdades e universidades, que já oferecem terapia gratuita a quem não pode pagar por um psicólogo, possam realizar sessões remotas para jovens de baixa renda de todo o País.

O objetivo é tornar mais simples o acesso ao tratamento psicológico, ampliando o alcance desse tipo de serviço, que é tão importante para a saúde mental.

A partir disso, delimitamos o nosso público: jovens de 14 a 29 anos que buscam uma opção acessível de tratamento psicológico. Assim, pudemos formular nossa persona e fazer as primeiras pesquisas de validação a fim de conhecê-las melhor, compreendendo suas ações e sentimentos.

Sentimentos e nuvens de palavras

Por meio das pesquisas quantitativas e qualitativas que realizamos com o nosso público-alvo, notamos que foram relatados os seguintes sentimentos:

  1. A preocupação com a perda de renda pesa na decisão de iniciar ou continuar uma terapia, que acaba sendo vista como uma não prioridade
  2. Frustração com padrões de beleza e consumo gerados nas redes sociais, provocando baixa autoestima
  3. Insegurança na socialização e nas relações
  4. O processo de entrada nos projetos de psicoterapia gratuita oferecidos pelas universidades é visto como burocrático e demorado
  5. Preocupação com a privacidade e a segurança dos dados armazenados nas plataformas
  6. Dificuldade de encontrar terapeutas confiáveis na internet
  7. Há preferência pelo atendimento presencial, mas não há muitas resistências ao on-line
  8. Insegurança e desconhecimento sobre o atendimento feito por estudantes e a garantia do sigilo

Fizemos ainda uma nuvem de palavras que expressam as sensações confirmadas pelos participantes da pesquisa quantitativa:

Também foi feita outra nuvem a partir de falas ditas pelos usuários nas pesquisas qualitativas:

Apesar das variações de palavras para os mesmos significados e de expressões comuns em vícios de linguagem, como “coisa” (o que diminui o destaque de vocabulários importantes), chamam atenção termos como “pessoa”, “sozinho”, “conversar”, “presente”, “fisicamente”, “controle/controlar”, “segurança”, “olho”.

Esses e outros significantes extraídos das falas dos jovens demonstram a necessidade de se sentirem seguros diante do terapeuta, que precisa se mostrar presente para eles, mesmo que o atendimento seja a distância. Isso reforça a ideia de que o aplicativo deve refletir essa atmosfera de presença e acolhimento.

Mapa de empatia

Após a análise das palavras, registrando os sentimentos dos usuários, montamos um mapa de empatia, com frases reais ditas pelos entrevistados, para ter uma compreensão mais exata do perfil da persona que vamos impactar com o nosso trabalho.

Embora as frases sejam reais, a identificação da persona no mapa é, por razões éticas e práticas, fictícia, ocultando a identidade verdadeira dos participantes e compilando na “persona ideal” características de usuários diferentes.

Guia de voz

Com base nas observações tiradas a partir das pesquisas com os usuários, construímos o Guia de Voz da marca, estabelecendo um conjunto de princípios que devem nortear a maneira como a plataforma se comunica com a persona. Considerando o perfil do público, entendemos que ela deve ser:

  • coloquial e pouco formal, utilizando um vocabulário próximo do cotidiano das pessoas;
  • afetuosa e acolhedora;
  • disponível sempre, mas nunca invasiva;
  • direta, mas nunca grosseira;
  • calma, porém assertiva;
  • respeitosa.

O tom de voz vai variar, seguindo esses critérios, de acordo com as situações que envolvem o usuário na utilização do aplicativo. Como o projeto lida com questões delicadas, que se referem diretamente à saúde mental e à vida íntima das pessoas, e levando em conta o contexto que pode motivá-las a procurar o serviço (sintomas e doenças como ansiedade, depressão e estresse elevado), é possível que esse jovem, quando utilizar a plataforma pela primeira vez, tenha algumas resistências associadas aos seguintes sentimentos, para cada um dos quais deve ser adotada uma linguagem específica:

Medo e desconfiança

Pensamentos associados: “Esse aplicativo vai me ajudar mesmo?”/“Quem vai me atender é alguém de confiança?”/“Meus dados, incluindo o que eu disser na terapia, estão seguros?”

Como abordar: o usuário precisa entender, já de início, como funciona o aplicativo, sendo convencido de que suas informações estão a salvo de interferências e violações. Por isso, devem-se utilizar palavras assertivas e diretas que transmitam segurança e confiabilidade. Exemplo: “Seus dados não serão divulgados e o sigilo das sessões está garantido”.

Hesitação e desconhecimento

Pensamentos associados: “Terapia realmente funciona?”/“Isso vai me ajudar a melhorar a saúde mental?”/“Vai me fazer me sentir melhor e resolver meus problemas?”

Como abordar: ainda há um grande tabu em torno da eficácia de uma terapia, por parte de pessoas, muitas delas pais e avós desses jovens, que não acreditam na importância de se cuidar da saúde mental. Para desmistificar essas crenças e responder a essas dúvidas, a recomendação é informar, de forma simples e breve, sobre o papel do terapeuta, deixando claro os benefícios que esse profissional pode trazer na busca pela solução dos nossos problemas, com um viés prático e concreto. Por exemplo: “Colocaremos você em contato com alguém que estará disposto a te ouvir e ajudar a resolver seus dilemas e desafios”.

Ansiedade

Pensamentos associados: “Esse atendimento vai ser rápido?”/“Em quanto tempo vou conseguir um terapeuta?”/“Que demora! Não tem ninguém pra me atender ainda!”/“Vai demorar muito pra marcar?”/“Vou conseguir achar rápido os horários que eu quero?”/“E se não tiver ninguém?”

Como abordar: a ansiedade é um sintoma bastante comum, principalmente na nossa sociedade, que preza pela agilidade e espera imediatismo nas ações. Buscaremos sempre encontrar o terapeuta no prazo mais rápido possível, mas o agendamento dificilmente será realizado na mesma hora em que o usuário estiver entrando no aplicativo. Por isso, é preciso manter sempre o tom de voz calmo e assegurar que estamos em busca de um terapeuta para aquela pessoa. Nesse tempo de espera, vale incentivar o usuário a escrever seus sentimentos no diário, o que, em si, tem um valor terapêutico e pode ajudar a diminuir essa ansiedade. Também é importante informar, de forma didática e transparente, a duração das sessões e a tolerância de faltas. Por exemplo: “Já estamos à procura de um terapeuta que possa lhe atender no horário em que você está mais disponível”/“Já escreveu no seu diário? Pensar sobre os seus sentimentos pode ajudá-lo/la a se sentir melhor”/ “Inicialmente, vão ser 10 sessões, com tolerância máxima de 2 faltas consecutivas”.

Vocabulário

O Guia de Voz orienta ainda que o aplicativo deve priorizar sempre o uso de palavras próximas à realidade do usuário. Além disso, devemos lembrar que existem diversos tipos de abordagens terapêuticas, entre elas, a Terapia Cognitiva-Comportamental (TCC) e a psicanálise. Como não trabalhamos com uma abordagem específica, trazer esses conceitos pode confundir o público. Por isso, fazem-se algumas recomendações:

  • Usar “terapia” e “terapeuta” em vez de “psicoterapia”, “psicólogo” ou “analista”.
  • Reportar diretamente ao usuário por meio do pronome “você” e derivados (seu, sua, lhe, se, si etc.). Caso haja ambiguidade ou o uso da terceira pessoa soar muito formal, admite-se o uso da segunda pessoa do singular (“tu”), em especial, a derivação “te” antes de verbos no infinitivo, em detrimento da construção “infinitivo+lo/la”.
  • “Sigilo” é um termo técnico da psicologia para dizer que as discussões na terapia não são compartilhadas com ninguém “de fora”, mas, no linguajar comum, pode trazer uma ideia de algo “proibido” ou, mesmo, “ilícito”. Por isso, no lugar dela, recomenda-se testar o uso da palavra “privacidade”.
  • Como não temos propriedade para diagnosticar, devem ser evitados jargões técnicos ao nos referirmos a questões ligadas à saúde mental, como depressão ou síndrome do pânico, e citar apenas sentimentos e sintomas que são compreendidos pelo usuário comum, como ansiedade, tristeza, estresse etc.

Validação

Feitas as primeiras hipóteses e análises, partimos para a validação. Utilizando a métrica de sucesso H.E.A.R.T. (Happiness, Engagement, Adoption, Retention, Task success), foi solicitado que os participantes respondessem com pontuações que variavam de “1 — Discordo totalmente” a “5 — Concordo totalmente”.

No primeiro teste de usabilidade com baixa fidelidade, pudemos observar a forma como as pessoas entendiam os comandos exibidos. A partir das respostas, percebemos que:

  • Os usuários continuaram com dúvidas sobre o que era e como funcionava o projeto.
  • Parte dos respondentes considerou o aplicativo “complexo”.
  • Metade dos participantes encontrou inconsistências, demonstrando dúvidas sobre a segurança e a confiabilidade da solução proposta.

Diante disso, foram realizados ajustes, visando à melhoria da experiência do usuário:

  • Antes colocado em uma única tela depois do login, o texto sobre a proposta e o serviço do PsiÜ! foi sintetizado e dividido em um carrossel de três interfaces, logo após o “Splash Screen” e as boas-vindas. Embora mais curta, com frases menores dispostas em pequenos balões, a explicação ficou mais direta, informando de maneira clara o serviço oferecido e proporcionando uma experiência de leitura rápida e fluida.
Carrossel com as boas-vindas do PsiÜ!
  • Para tornar a explicação mais didática e simples de entender, as frases foram escritas em formato de respostas para duas perguntas curtas, que dizem respeito ao interesse imediato do usuário: “O que é o PsiÜ! e como funciona?” e “E quem vai me atender?”. A linguagem, em primeira pessoa, busca, além de uma conexão com a persona, sanar possíveis dúvidas básicas que ela terá ao acessar o serviço pela primeira vez.
Explicação resumida sobre como o projeto funciona
  • Antes da seção de triagem, na qual o usuário marca as opções de agendamento para as sessões com o terapeuta, foi acrescentada uma tela explicando a importância das perguntas genéricas sobre os motivos que levaram a pessoa ao aplicativo e deixando claro que os dados do usuário não serão divulgados.
  • Também foram usadas interjeições e expressões cotidianas, como “Ah!”, “Ei!”, “E fique tranquilo” e “Prontinho!”. Elas trazem leveza e chamam atenção para informações importantes colocadas logo em seguida.
Tela após a finalização do formulário de agendamento

Legibilidade

Para testar o grau de compreensão dos direcionamentos dados aos usuários, os textos foram colocados na plataforma Hemingway Editor, que analisa a legibilidade de uma mensagem. Segundo a ferramenta, eles têm uma linguagem de fácil entendimento para alunos da terceira à sexta série do ensino básico, o que indica uma legibilidade acessível para um público bastante amplo.

Aprendizados e próximos passos

As mudanças implantadas no protótipo de alta fidelidade ainda precisam ser testadas em validações futuras. No entanto, as primeiras pesquisas com os jovens e os testes feitos com os wireframes já indicaram caminhos que ajudaram a equipe a repensar e aprimorar a proposta de solução apresentada.

A experiência com UX Writing nos mostra que, para desenvolver uma escrita que facilite a experiência do usuário, é preciso, mais do que qualquer prática de mercado ou heurística, conhecer previamente o usuário, destino final para quem o projeto é concebido. Descobrir como a persona pensa, age e consome e, principalmente, analisar as necessidades dela são a base para todo o trabalho de construção da linguagem que vai ajudá-la a completar o fluxo desejado da forma mais satisfatória possível.

Todo UX Writer precisa ter, sobretudo, a humildade de ouvir o usuário e, a partir dele, estabelecer uma comunicação que seja simples, transparente e conversacional. Sem deixar de lado o conhecimento teórico gerado a partir de experiências anteriores, é essa abertura ao diálogo com o público que deve nortear as decisões sobre o tom do que se escreve. Além disso, cada palavra faz diferença no entendimento e na forma de agir dessa persona.

No mundo digital, em que somos estimulados a consumir produtos e informações o tempo todo, destaca-se quem sabe trabalhar com clareza e transparência. Para que o usuário tome as decisões esperadas e conclua a jornada satisfeito com o serviço, o cliente deve estar munido de informações corretas e precisas, tendo a compreensão plena do que é proposto e do benefício que vai obter. Do contrário, fica muito difícil mantê-lo motivado a permanecer na plataforma.

No mais, a palavra de ordem é testar. Porque o processo de aprendizagem com o outro não é outra coisa senão infinito.

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Artur Ferraz

Jornalista, comunicador, recifense e sempre em busca da palavra certa.